Médicos debatem especificações dos transtornos alimentares

ABBY ELLIN *
do New York Times

O ano era 1988. Eu era estudante do penúltimo ano da escola e estava no exterior, viajando sem destino por todo o Oriente Médio e Europa. Minha mochila estava cheia de shorts e camisetas, roupas de banho e sarongues, meu walkman e fitas da banda Grateful Dead. Ah, sim, claro, também uma balança, enterrada lá no fundo, embaixo da camada de meias. Como eu tinha sido uma adolescente gordinha --passei seis verões em um acampamento para jovens acima do peso--, tinha pavor de engordar.

Infelizmente, nada me dava mais prazer do que comer, algo que eu não deixei de fazer. Para manter uma aparência de controle, eu dividia minha dieta em Dias de Comida e Dias Sem Comida: isto é, dias em que eu consumia grandes quantidades de alimentos e dias em que eu policiava minha ingestão de calorias com precisão militar. A rotina mantinha meu peso sob controle (mais ou menos). Não importava que aquilo fosse maluquice.

Ninguém do centro de saúde da escola sabia o que fazer comigo. Obviamente, eu não era anoréxica; na verdade, eu era levemente cheinha. Não tentava eliminar os alimentos depois de tê-los comido, então a bulimia estava fora de cogitação. Para minha tristeza, os conselheiros disseram que não podiam fazer nada por mim e me mandaram continuar minha vida.

Hoje, provavelmente eu me qualificaria para um diagnóstico de "transtorno alimentar não especificado", geralmente conhecido pelo seu acrônimo do inglês, EDNOS. Na edição atual da publicação "Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders", o termo abrange praticamente todos os tipos de problemas alimentares que não sejam anorexia ou bulimia.

Apesar do nome menos familiar, o EDNOS é diagnosticado com frequência maior que os dois outros transtornos --em 4% das mulheres americanas todos os anos, segundo a Associação Nacional de Transtornos Alimentares (a associação não possui estatísticas envolvendo homens). Os subconjuntos dos EDNOS incluem transtornos de compulsão alimentar, purgação, síndrome do comer noturno, mastigar e cuspir a comida, e até ser demasiado exigente com a comida.

No entanto, o diagnóstico deixa muitos clínicos perplexos, que o chamam de ambíguo, vago e difícil de lidar. Assim, a Associação Americana de Psiquiatria está fazendo uma revisão geral de sua definição de EDNOS para a próxima edição do manual de diagnóstico, conhecido como DSM-5, previsto para ser publicado em 2013.

"O consenso é de que o termo EDNOS é amplo demais, ou seja, ele pode ser usado mais frequentemente do que o desejável, já que o rótulo não transmite muita informação específica", afirmou Dr. B. Timothy Walsh, professor de psiquiatria de Columbia e presidente do grupo de trabalho de transtornos alimentares para o novo manual.

Walsh afirmou que o painel estava "considerando várias formas de reduzir a frequência com a qual essa ampla categoria é usada". Todavia, pelo menos por enquanto, o EDNOS continua sendo o transtorno alimentar mais comum dos Estados Unidos. Um estudo de setembro de 2009 publicado no The International Journal of Eating Disorders descobriu que o EDNOS era muitas vezes um meio do caminho entre um transtorno alimentar e a recuperação ou, de forma menos comum, da recuperação para um transtorno alimentar total.

Dietas

Embora viajar com uma balança na mochila não seja um dos critérios, a preocupação com o peso e a comida é, assim como dietas crônicas severas, exagerar com frequência na alimentação, síndrome do comer noturno, transtorno da purgação e possivelmente a compulsão por exercícios. Se tudo isso soa um pouco vago --encontre uma única mulher que não esteja preocupada com seu peso ou corpo--, os psicólogos fazem uma distinção.

"A alimentação tem que estar perturbada de alguma forma, assim como o comportamento relacionado à alimentação", disse Ruth H. Striegel-Moore, professora de psicologia da Universidade Estadual de Montana. "Além disso, o problema tem de levar a algum tipo de impedimento. Por exemplo, algumas mulheres não frequentam festas porque se preocupam com o que vão comer".

"Se você está se restringindo tanto que isso afeta seu trabalho de forma negativa, você provavelmente se enquadra no EDNOS", afirmou.

Mesmo assim, muitos clínicos afirmam que o diagnóstico simplesmente é vago demais.

"Uma das dificuldades do EDNOS é que existe muita diversidade dentro da mesma categoria", explicou Craig Johnson, diretor do programa de transtornos de alimentação da Laureate Psychiatric Clinic and Hospital, na cidade de Tulsa, Oklahoma. "Pelo fato de haver diferentes apresentações com as quais nem todos os clínicos estão familiarizados, há o risco de que as pessoas que possuem transtornos alimentares e poderiam se beneficiar de tratamentos clínicos não saibam que têm um problema".

De fato, uma razão pela qual o painel de especialistas quer mudar as diretrizes é para ajudar os pacientes com problemas de alimentação a reconhecê-los, mesmo se não apresentarem nenhum dos sintomas tradicionais.

Kris Shock, por exemplo, usava laxantes e restringia seu consumo de alimentos por anos, mas nunca vomitava nem tinha compulsão alimentar, e seu peso estava no padrão. Ela só consultou um psiquiatra para o que ela e seu marido chamavam de "problema de alimentação" quando completou 31 anos, quando ficou viciada na pílula de emagrecer ephedra, como contou em recente entrevista.

Agora com 37 anos e diretora de um centro de assistência a crianças em Atlanta, Shock disse que, quando ela finalmente recebeu o diagnóstico de EDNOS, pensou: "Ah, estou doente o suficiente para receber ajuda e passar pela experiência de recuperação".

Planos de saúde

A maioria dos planos de saúde não cobre EDNOS (Shock refinanciou sua casa para pagar sua permanência de uma semana e meia num centro residencial de tratamento). Mesmo assim, pessoas com EDNOS possuem alto risco de desenvolver vários dos problemas que afligem anoréxicos ou bulímicos, incluindo osteoporose, ataque cardíaco, desequilíbrio hormonal e até a morte.

Com isso em mente, muitos médicos camuflam o diagnóstico apenas para que os pacientes possam receber cobertura do seguro. Uma pessoa que mastiga e cospe pode ser classificada como bulímica, disse Striegel-Moore; uma pessoa quase anoréxica seria classificada como portadora do transtorno da farra alimentar.

Clínicos afirmam que pacientes como esses muitas vezes precisam sentir que possuem um transtorno alimentar "real". "Muitos pacientes sentem esse estigma se sabem que receberam o diagnóstico de EDNOS: ‘Obviamente, não sou bom o suficiente para ser anoréxico‘", disse Nicole Hawkins, diretora de serviços clínicos do Center for Change, um centro de tratamento contra transtornos alimentares em Orem, Utah. "Tive muitas pacientes que sentiam que precisavam perder mais peso, para que não menstruassem e pudessem mudar o diagnóstico. As pacientes realmente sentem que têm de ‘aperfeiçoar‘ o transtorno alimentar para merecer tratamento".

Era assim que Stacey Taylor se sentia. Com 26 anos e professora do jardim da infância em Alexandria, Louisiana, ela contou que começou a fazer dieta aos 7 anos; aos 16, ela perdeu 31kg, e dali até os 25 anos ela vomitava e abusava de remédios para emagrecer, diuréticos e laxantes. Embora ela vomitasse de 3 a 11 vezes por dia, ela nunca foi classificada como bulímica porque não tinha compulsão alimentar, e seu peso nunca foi baixo o suficiente para ser considerada anoréxica.

"Os médicos olhavam para mim e diziam: ‘Você não parece ter um transtorno alimentar - vá para casa e coma algo‘", lembra-se, acrescentando que nem ela achava estar "doente o suficiente" para precisar de ajuda.

Alguns médicos afirmam que as exigências de peso deveriam ser eliminadas para todos os transtornos alimentares no novo manual de diagnóstico. Deb Burgard, especialista nesse tipo de transtorno em Los Altos, Califórnia, observa que as pessoas de qualquer peso ou massa corpórea podem fazer farras alimentares, regime ou colocar comida para fora de forma excessiva.

"Trabalhei com muitos pacientes com peso dentro do padrão e até gordinhos que realmente deveriam receber o diagnóstico de anorexia nervosa", disse Burgard, fundadora do Health at Every Size, uma abordagem que foca na saúde, em vez do peso. "Mas há uma confusão baseada no manual de diagnóstico atual envolvendo os critérios para o diagnóstico se o paciente não tem um IMC baixo - mesmo se o peso atual dele for extremamente baixo em relação a ele próprio e apresentar sinais de inanição".

Talvez a parte mais difícil de tratar o EDNOS é que a alimentação "normal" é um conceito bastante vago. A magreza tende a ser ideal, não importa como se atinge esse objetivo.

"O que o EDNOS realmente demonstra", disse Johnson, de Tulsa, "é que não temos diagnóstico empiricamente derivado na psiquiatria. Veja o caso da depressão. Em que momento ela deve ser considerada uma condição que precisa de tratamento? Quando se fala em hábitos alimentares, torna-se extraordinariamente complicado, pois todo mundo tem uma relação diferente com a comida, e geralmente ela é um pouco complicada".

* Abby Ellin é autora do livro "Teenage Waistland: A Former Fat Kid Weighs In on Living Large, Losing Weight and How Parents Can (and Can‘t) Help".


Fonte: Folha On Line

by jack