O Homem é um ser bio-psico-social?

Diz-se muito, nos cursos de ciências humanas, e mais notadamente nos de psicologia, que o homem é um ser "bio-psico-social". Seu lado biológico seria explicado por uma perspectiva mais naturalista, evolucionista, experimental e quantitativa; já o lado social seria explicado por questões culturais, históricas, relativas ao significado, e a análises qualitativas. Mas quanto à especificidade psicológica, como se explicaria?

O problema todo remete, inicialmente, a Comte (para não citar outros). A psicologia como projeto de ciência tem numa de suas principais inspirações o positivismo. Mas Comte, em seu Curso de Ciência Positiva, negava categoricamente a possibilidade de uma psicologia científica. Enquanto indivíduo - dizia Comte -, o ser humano poderia ser explicado pela biologia e por observações externas; enquanto ser cultural, o homem poderia ser explicado pela sociologia. Nada que pudesse garantir a autonomia de uma ciência dita "psicológica".

Um objeto que fosse digno da psicologia deveria ser criado. E, para isso, numa série de manobras que vão do século XIX ao XX, criou-se a noção de consciência como categoria especificamente psicológica. Vejamos o que está em jogo: de um lado, a consciência tal como é debatida na filosofia, como critério a partir do qual todo conhecimento é possível. De outro, a necessidade de um objeto mensurável, que legitime uma "ciência" do homem. A tradição mostra muito bem que dois momentos tornam a psicologia uma ciência, e a consciência, mensurável: a psicofísica de Fechner, e o introspeccionismo de Wundt. A lei de Weber-Fechner demonstra como se pode relacionar um quantum de estímulo com um grau de sensação; as aplicações introspeccionistas de Wundt (muitas vezes inspiradas a partir de Fechner) visavam analisar a consciência em seus elementos constituintes. Entretanto, o método experimental, na história da psicologia, encontrou sempre dificuldades para delimitar o homem naquilo que é em sua especificidade: ser eminentemente social, que produz significado, e vive numa cultura. De onde uma questão sempre repetida: se a psicologia torna-se ciência, deixa de ser psicologia; quando encontra a especificidade do homem como produtor de sentido, perde sua cientificidade.

Um panorama muito curioso advém disso: aquilo mesmo que confere a especificidade de uma ciência psicológica (a "consciência", para alguns;" processos mentais superiores", para outros; ou ainda, "comportamentos complexos", para aqueles que buscam destacar-se dessas questões, mas ainda tomando-as como ponto de referência) é um campo de questões cuja natureza provém de uma discussão essencialmente filosófica (a natureza da consciência, a origem do conhecimento, seu caráter determinado ou a priori, e assim por diante); campo de questões cuja inspiração de resolução (que constitui a própria origem da psicologia) provém de perspectivas naturalistas; e cujo sentido se direciona diretamente ao homem como ser social. Trocando em miúdos, a psicologia surge como disciplina que analisa o homem como ser "bio-psico-social", sendo cada um desses elementos provindos de naturezas e de projetos diversos.

Quando um psicólogo diz que o homem é um ser bio-psico-social, está enunciando aquilo mesmo que tornou a psicologia possível: a justaposição de três universos de questões díspares, reunidos para dar conta do homem como objeto de conhecimento de si mesmo. Mas precisamente por esse mesmo motivo, a expressão "bio-psico-social" deixa uma questão em aberto: como relacionar essas três ordens de modo que a passagem de uma á outra seja uma passagem de fato, e não apenas de projeto? Ou, em outras palavras, como agrupar as psicologias de inspiração biologicista com as mais "qualitativas" sob um mesmo conjunto de princípios? Mais do que uma explicação, essa despretensiosa expressão torna-se nada mais nada menos do que a enunciação de um problema que, ao projeto de uma psicologia científica, una e coerente, é de primeira ordem.

Fonte: Blog Catatau